A alimentação não são só nutrientes
A alimentação engloba a componente biológica, cultural, emocional e social
Vivemos em tempos que a alimentação, quando debatida no dia-a-dia, parece resumir-se a nutrientes. A uma mera causa-efeito entre determinados alimentos ingeridos em certas quantidades, e os resultados que daí provêm. Mas a alimentação não é, nem deve ser apenas isso.
Há uma simplificação do ato complexo que é alimentarmo-nos e de todas as áreas que estão envolvidas. Para termos a certeza disto, basta lembrarmo-nos de quantas vezes é que já vimos a alimentação simplificada a cálculos como “O seu objetivo é emagrecer? Consuma menos calorias do que aquelas que gasta”.
No entanto, sabe-se que a alimentação vai muito para além da parte biológica, em que há um foco em nutrientes e calorias dos alimentos. Tem uma componente cultural, emocional e social muito importante.
A parte cultural irá definir que tipo de alimentos são mais utilizados, consoante os hábitos gastronómicos do país, que vão ter uma ligação direta com os alimentos que tem à sua disposição.
A religião também tem uma influência grande nos hábitos alimentares, uma vez que promovem práticas alimentares diferentes. Desde exclusão de determinados alimentos, à prática de jejum intermitente entre outros rituais que influenciam a cultura alimentar1.
A componente emocional, que nos permite obter prazer através da alimentação, criar lembranças de certos alimentos e métodos de confeção dos mesmos, transportando-nos para uma certa nostalgia de sabores e de tempos passados.
Quem é que não tem saudades de determinado prato gastronómico que só a nossa avó conseguia fazer? Com aquele sabor único, impossível de ser replicado por outra pessoa.
A componente emocional da alimentação é fundamental. Desde há muito tempo que cozinhar é visto como uma forma de demonstrar amor para outras pessoas. Como uma forma de bem receber e de tratar alguém.
No entanto, nos últimos anos, com o aumento significativo de pressões sociais estéticas, em que é imposto à sociedade (principalmente no sexo feminino) um determinado padrão corporal, a comida como veículo de amor tem vindo a ser substituída por comida em forma de “terrorismo nutricional”.
Este aumento das pressões sociais da estética coincide com o aumento da utilização das redes sociais, na última década e meia. Plataformas que ao permitirem que cada pessoa consiga ter acesso à vida de outra em qualquer parte do mundo, favorecem maior comparação2.
Se houver maior insatisfação corporal por via da comparação, o que acha que poderá acontecer?
Maior predisposição para entrar no “terrorismo nutricional”
Através da retórica da “alimentação com culpa” em que se associa alimentos saborosos a sentimentos negativos, como culpa no final da refeição. E um certo incentivo a uma alimentação sem sabor e prazer para atingir o rótulo de “comer sem culpa”, comer “clean” ou comer “saudável”.
Quem é que nunca ouviu a associação entre comer “saudável” e ter uma alimentação à base de vegetais e carnes brancas grelhados? (Mesmo quando não se aprecia).
E sempre que fugir dessa rotina alimentar e quiser algo fora do “saudável”, como um doce por exemplo, este terá que ser biológico, sem glúten e com açúcar de coco. Caso contrário não poderá comer “sem culpa”. Mas acaba por aceitar esta mensagem proveniente da indústria alimentar e estética sem se interrogar, se é benéfica para a sua saúde mental.
Não só não é mais saudável, nem do ponto de vista físico nem mental, como os preços costumam ser bastante mais caros. Trata-se de um aproveitamento das inseguranças das pessoas para retirar lucros milionários disso.
A mentalidade de dieta está incutida na sociedade. E esta indústria (alimentar e estética) tem objetivos muito específicos: fazer com que não goste de si própria, para que fique com várias inseguranças. Posteriormente, começará a sentir-se culpada ao comer, recorrendo a dietas restritivas que resultam apenas a curto prazo, causando danos físicos e mentais a médio-longo prazo. Se antes disto, já tinha inseguranças, estas aumentaram ainda mais. A frustração, tristeza e angústia também cresceram exponencialmente. E estão assim, criadas as condições para lhe serem vendidas as “soluções milagrosas” de emagrecimento. Já se apercebeu desta realidade?
Sabe do impacto negativo que o sentimento de culpa poderá ter na sua alimentação?
Foi elaborado um estudo, que envolveu 294 adultos em que os participantes eram expostos a um bolo e tinham que responder a associação que faziam deste alimento. Se ao verem o bolo, este era automaticamente associado a celebração ou a sentimentos de culpa3.
Verificou-se que 73% dos participantes revelaram que o bolo estava associado a momentos de celebração e alegria enquanto 27% a sentimentos de culpa e frustração3.
O estudo teve a duração de 18 meses e verificou-se que dos participantes que queriam perder peso dentro dos 2 grupos, o grupo que associou o bolo à celebração teve maior sucesso na perda de peso do que o que associou o bolo a sentimentos de culpa3.
Para além disso, os participantes que associaram o bolo de chocolate a sentimentos de culpa não relataram intenções de comer mais “saudável” do que o grupo que associou o bolo a sentimentos de comemoração. Relataram também níveis mais baixos de controlo alimentar percebido e tiveram ainda menos sucesso em autorregular o seu peso num período de 18 meses3.
Este estudo parece indiciar que um comportamento alimentar saudável, que proporcione paz na sua alimentação, permite não só uma vida equilibrada, como uma autorregulação do seu peso a longo prazo, contribuindo para que se mantenha longe de dietas restritivas e da mentalidade de dieta3.
Alimentação como um modo de convívio social
Somos peritos em arranjar uma boa desculpa para fazer um almoço com amigos, ou para reunir a família toda à mesa, certo?
Esta componente é essencial, uma vez que desde o surgimento da cozinha, em que os nossos antepassados se iniciaram no domínio do fogo (Homo erectus), que o ato de fazermos refeições em comum se instalou. Não será desta forma contraproducente e pouco saudável, desprezar esta componente da alimentação?
Sempre que pensar num estilo de vida equilibrado e com saúde, física e mental, lembre-se que estas 4 componentes da alimentação devem existir: biológica, cultural, emocional e social.
A alimentação tem que ser capaz de nos fornecer os nutrientes, felicidade, calma e bons momentos associados ao convívio. Nunca o contrário, como sentimentos de ansiedade, frustração, culpa e obsessão por nutrientes e calorias.
Referências
- Rucker, R. B. & Rucker, M. R. Nutrition: ethical issues and challenges. Nutrition Research vol. 36 1183–1192 (2016).
- Jabłońska, M. R. & Zajdel, R. Artificial neural networks for predicting social comparison effects among female Instagram users. PLoS ONE 15, (2020).
- Kuijer, R. G. & Boyce, J. A. Chocolate cake. Guilt or celebration? Associations with healthy eating attitudes, perceived behavioural control, intentions and weight-loss. Appetite 74, 48–54 (2014).
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